AMAZÔNIA KM 861

O trem apita de madrugada, os passageiros amontoam-se no frio leito de cimento da estação.

A moça do botequim despacha sem pressa a multidão, como pacotes esquecidos no correio.

Uma criança chora com fome puxando a saia remendada de uma mulher gordona, com os bicos dos seios marcando no soutien.

Criança no colo, criança pela mão, criança entre as pernas brigando com a saia e criança agarrada nos bicos dos seios do soutien. A mulher gordona olha no olho do filho, procura a silhueta como no espelho de casa e passa batom nos lábios carnudos. Sorri para a moça do botequim mostrando dois dentes cariados.

– Um bilhete para o km 861 na classe econômica, por favor.

A criança do colo chora. O trem apita seguidamente. Som agudo, seco sem o vapor da máquina. O motorista fica em pé na cabine da frente, com a perna pendurada pro lado, como soldado no quartel; esconde os olhos atrás dos óculos escuros, sorri cinicamente.

O trem apita cinco vezes. É hora de partir.

– São cinco horas da manhã – diz alguém.

– Sejam bem-vindos a bordo. Bom dia! – Exclama a voz afeminada do chefe, que cumpre as ordens do trem moderno da companhia – Este trem pode sofrer um modesto atraso – finaliza.

A mulher gordona toma assento na terceira fila, cadeira número sete. Guarda a saia remendada entre as coxas e esconde o bilhete entre os seios.

O trem pára três quilômetros depois.

Outro trem, carregado de madeira, vem na direção contrária.

– Quatro horas de atraso – diz alguém – após a privatização da ferrovia, as cargas de carvão, ferro e madeira têm prioridade sobre passageiros.

Km 738, estação de Marabá. O sol bate na janela, sem pena. Sobe uma multidão abafada, os rostos escondidos do sol, deixam-se perceber as bagagens e as camisas empapadas de suor.

A mulher gordona tenta puxar conversa pelo olho. Sorri ao encontrar o meu.

– Vou visitar o cemitério das castanheiras, lá na “Curva do S”, em Eldorado dos Carajás – diz-me timidamente.

Penso logo nas derrubadas de madeiras. “Gostaria de escrever um livro”, penso. “Preciso de uma história, mas não tenho um sujeito”, olho para a mulher, dou um sorriso puxado, de cortesia. “Preciso descobrir mais sobre as derrubadas das árvores”, penso, mas fico calado com medo de que outras pessoas descubram minhas intenções.

– Dezenove toras de castanheiras estão na beira da Curva do S. Toras mortas em lugar dos assassinados. Foi tocado fogo, queimadas todas – exclama a mulher. A criança chora. – Uma tora é do meu marido…

Apita o trem cortando o ar espesso e abafado. O trem corre rápido, furando o muro de vapor, o vento quente sufoca sem pena. As marcas de ferro da ferrovia cortam as árvores da floresta como lâminas da tesoura no papel. O som gasguito das rodas sobre os trilhos da estrada de ferro penetra nos ouvidos de quem neles segue. Aço sobre aço, sem pena. Assim, duro, corre o trem como doente antes da morte: só os olhos de fora navegam a dor. Assim é a foto da paisagem, a luz que mancha o preto no branco, uma atrás de outra, silenciosas. Migalhas de poesia.

A gordona de saia remendada entre as coxas volta a falar escondendo os olhos no colo do neném:

– Eu corri – Não ia enfrentar a polícia com facão na mão. Meu marido voltou para pegar o documento que deixou na barraca. Foi naquele momento que atiraram na sua cabeça. Eu tava dentro do capim com meus filhos me escondendo. “Vai não. Vai não!”. “Eu vou buscar as coisas.” Escutamos os tiros. A polícia queimou tudo. Deixaram só os pedaços de lençóis queimando. Ficamos com o coração apertando os ouvidos. Eram muitos tiros diretos na cabeça. Outros que corriam foram baleados dentro do capim. Só no outro dia foram achados. Acharam um no meio da estrada segurando um documento na mão. – “Como era vestido ele?”- perguntei para o policial. “Camisa vermelha e calça jeans!”.- “É ele, respondi. É meu marido”- suspirou com toda a tristeza acumulada na fronte.

Seu grito silencioso corta como navalha a alma do universo pensante. Não havia definição na máscara daquela mulher gordona, com seios enormes marcando o soutien. Seria dor? Libertação? Ou simplesmente revolta? Escuto em silêncio aquele jeito de ser das pessoas. Era tudo normal. Anormal era eu ter achado estranho aquilo. 

Fico a observar a mulher gordona com o neném ao colo e o tram tram do trem da companhia. O trem corta, como uma linha horizontal do pincel de Portinari, a paisagem sempre igual. O vento quente leva a poeira da estrada de chão para dentro do trem. As imagens tornam-se nebulosas; os olhos da mulher escondem-se na penumbra. No lado de fora, alguns quilômetros de eucaliptos altos e fracos movem-se tímidos ao vento. Dois pés de bananeira elevam-se no capim seco, namoram solteiros. A paisagem é aquela abafada de sempre.

– Aqui tem outra parada – diz uma mulher com voz sufocada.

– Eles chamam de estação quando passa um trem – sorri a gordona, olhando passar um trem vestindo um manto de fumaça preta. Carrega bilhões de ferro da indústria de minério da companhia.

Na beira dos trilhos, a urbanização de barracos, todos de madeira, portas e janelas fechadas, enfileirados no chão de terra vermelha que corta as esquinas; o sol quente arde sem sombra.

O trem apita 12 vezes. É hora de comer, pensa a mulher, sacando o seio de fora no meio de olhares distantes e discretos que tentam curtir a rotina de sempre.

O neném ao colo suga os bicos secos, sem leite. Chora como sempre no desengano do sobrevivente.

– Nós só estávamos ali por um pedaço de terra no km 861 – volta a dizer a gordona – mas tudo acabou na Curva do S, só com a terra nos olhos. Sonho com ele na roça, sentado no poço, cuidando da casa “Abra a porta aqui, mulher”. “Vamos embora, meu marido, eles querem nos matar”. “Vou não. Eu estou satisfeito aqui”. “Aqui a gente tem terra, mas se alimenta de sonho. Ah, o meu marido! ”

O trem aperta os freios sobre o aço enferrujado. Olho direto para a carga de um caterpillar gigante, empoeirado, riscado nas costas. É para abrir estrada em Açailândia, o nome da região no km 513.

Em lugar da fruta do açaí, só o ferro dos trilhos do trem e as vacas de sempre.

Uma barraca de lona na beira de um pequeno rio vermelho. É o mercúrio do garimpo que faz tudo isso.

O cheiro é forte, de natureza acabada, de cinza ardendo ao sol.

Um urubu estende as asas no esqueleto de um tronco de castanheira solteiro na rala selva, na vegetação de reserva, que deixa os olhares aborrecidos.

Centenas de cabeças, com olhos esticados de prazer e rostos contraídos, furam as janelas do trem tentando puxar o ar para os pulmões.

O trem apita, arrocha sobre os trilhos ao cruzar humilde casa de taipa. Aparece um velho casal desencantado, com o rosto se apegando à velocidade para fugir do dia-a-dia, mas na realidade o tempo marca sua hora a cada respiração.

Na parada do trem, meninos e mulheres aparecem do nada, como fantasmas, vendendo de tudo. Carregam bandejas de farta comida; saladas que parecem recém-saídas da geladeira; garrafas com gelo nas costas quentes de alguém; montes de laranjas; coco verde e abacaxi descascado, trepando o ar; banana melada em canela; peixe frito na hora. “Frito agora”, gritam.

Ali está a multidão abafada de fantasmas esperando o trem da companhia, amontoada no sol a pino, nas beiras dos trilhos, tocando fogo num pedaço de carvão acabado para esquentar comida, saltitando de chinelo nas pedras da estrada de ferro. Sorrisos pálidos sem a alegria dos lábios.

Apita o trem sobre as vozes que tentam rascunhar o espesso muro de vapor, tentam vencer o sol, a garganta seca, mas o trem da companhia não perdoa, apita seguidamente, mete ordem. Não tem tempo, é hora de partir!

As carvoarias queimam, sem descanso, o monte de madeira. A poeira preta do carvão sufoca famílias sepultadas em buracos de terra vermelha, nas chamas do fogaréu. Vendem carvão para a fusão do ferro da companhia.

Meninos dentro de fornos, mulheres cavando buracos e homens queimando e arrastando pedaços de florestas.

O trem pára na última estação. Chegamos ao km 861, com quatro horas de atraso do previsto.

São 861 km de estrada de ferro dentro da mata virgem. “Um estupro”. Uma multidão de vozes fantasmas que rascunham o ar desce do trem. Uma onda viva, um formigueiro sem vontade própria ia arrastando tudo o que encontrava no caminho.

As vozes corriam empurradas à força por vendedores improvisados de passagens. Os carros coletivos iam para todas as vilas. Gritam para o Garimpo de Serra Pelada, Serra de Carajás, Curva do S e Eldorado.

– Por aqui, vem me arrasta uma voz pelo braço sem que consiga enxergar seu rosto. “Me empurra” dentro de um carro de olhares frios, o cheiro forte de sempre.

“Por onde começo? Não conheço ninguém”.

Hospedo-me em motel de velhas prostitutas para disfarçar um pouco.

É noite, estou cansado, as prostitutas batem na minha porta, como num tambor de Olodum. É a voz do trabalho delas, querem trabalhar, querem entrar e adoçar suas carnes na noite de Vênus, sem mitologia, sem poesia, apenas garantir a sobrevivência.

Estendo a perna sob o lençol da cama, de olho na porta. Alguém enfiou o olho na fechadura do quarto, espia-me as carnes, quer entrar no meu corpo.

Abro a porta do quarto, é a mulher gordona, gordona como uma velha castanheira, com os bicos dos seios marcando o soutien.

– Vou escrever um livro – digo sem pensar – mas não tenho uma história. Não tenho um sujeito – repito para um par de olhos surpresos, requebrados de paixão e para o neném ao colo com o choro morto nos lábios.

– Achei o leite no peito alugado de uma prostituta – disse, lendo no meu pensamento – leite é caro nesta região, as vacas daqui só prestam para carne. Aponta para uma rapariga morena com o cabelo loiro como espiga de milho – “cuidado, são as traiçoeiras do garimpo. Não confie. No km 861, é pai que mata filho e filho que mata pai. Meu marido morreu” – diz a mulher com as lágrimas desfilando, duas a duas, pelo rosto.

A mulher gordona recolheu os cabelos depressa enfiando uma caneta no alto da nuca e desapareceu no corredor do motel de Eldorado.

Mais tarde, “virou-se” nas costas de rudes braços de um freguês, da metade do tamanho dela.

Estou largado no km 861, com as idéias confusas.

Na minha frente há uma fotografia imaginária contemplando o cenário, aponta dois caminhos. Meu coração diz “cumpre tua missão”, mas lembro que poucos são os defensores da natureza que retornam para discutir seus feitos. Lembro a historia de Chico Mendes. Tento enxergar o perigo porque no fim do mundo tudo pode acontecer.

Penso nas derrubadas de madeiras e as toras desfilam no meu rosto, uma atrás da outra, como lágrimas mortas, decapitadas.

Decido continuar a viagem não tenho tempo.

“Não me mate. Não me seqüestre. Eu não tenho dinheiro. Meu dono é que tem”, direi assim para salvar a minha vida, penso deitado na cama de cimento, de quem sabe qual prostituta!

Por alguns minutos estive assim, mudo, prostrado, quase morto minutos cumpridos, horas e horas de dor sufocada e perdida, que agora aparece, toda de uma vez, como jorro de alma ferida, interminável, que os olhos não conseguem entender.

Naquela noite chorei muito. Chorei todas as lágrimas poupadas durante a viagem. Fecho os olhos.

 Estou na sala de um cinema.

Sento inconsciente. Na tela, um filme estranho.

“A frescura, a brisa leve, o cheiro verde, a floresta, cadê?

Onde está a Amazônia que conheci?”.

Espero na saída do posto de gasolina, fechado por falta de energia.

Mesmo assim, espero o motorista. Não enxergo o do caminhão azul. É ele quem vai me levar.

“A maioria deles são azuis. Azuis por quê? Azul do macho-homem, azul de Portinari Sei lá qual azul. ”

A maioria dos motoristas tem que passar no posto.

– A fiscalização é de dois em dois. Sai mais barato fiscal “filho da puta”! O carro não pode rodar sem carteira, diz o motorista do caminhão azul, passando a mão no casaco surrado de muitas viagens sem ser lavado.

Observa as botas pretas do policial rodoviário aproximar-se.

Os olhos dos dois se cruzam, não falam, se entendem. Desta vez, os do policial dizem que para passar precisa de trinta reais. Cinco não pagam, é propina curta, dinheiro merreca, pensa o policial, com os olhos mais inteligentes que os ouvidos. Os olhos do motorista vasculham, só encontram amassados, no canto da pasta, troco empoeirado em dinheiro; talvez desse para comprar cigarros.

O motorista desce do caminhão, cospe no chão. Preenche nervosamente uma promissória de trinta reais de gasolina para abastecer no posto. Paga o serviço como o de uma prostituta no motel de Eldorado.

A gasolina fiada vai direto para o tanque da polícia. É um tanque amarelo ao lado do posto fiscal. Galões de gasolina enfileirados, subindo e descendo uma escada de ferro, em procissão contínua.

O policial esconde o rosto no chapéu como a garça ladra perseguida, camufla-se na poeira da estrada arrastando as botas pretas. O caminhão azul é liberado. O motorista foge. Foge sempre de qualquer fiscal que encontrar nos quatro cantos de entrada da pista. Foge para continuar a viagem.

“Sempre dou de cara com um policial filho da puta!” – exclama o motorista, contraindo o rosto, os olhos arregalados, a boca salivando, parecendo cachorro doido com o mal da raiva, por não ter sido imunizado no processo de educação que constrói cidadãos.

É madrugada de uma segunda-feira qualquer.

O despertar do galo acompanha o primeiro coador de café na lanchonete. Um homem barrigudo limpa a cara com uma garrafa de água. Passa a mão molhada no pescoço enrolando a toalha. “Mija” ao lado do pneu e liga o rádio no volume máximo. O rádio zoadento, sem sintonia, desperta outros barrigudos, avisando que é hora de voltar ao trabalho. Outras garrafas de água nos rostos e pneus mijados, parecendo cachorros e gatos demarcando o território.

Tudo é muito curioso: contraste entre a natureza e compatriotas machos num duelo inconsciente.

O ar está embriagado de fumaça de chifre de boi. Queima lento, sem apagar-se. É chifre de boi que mata homem e espanta mosquitos, dizem. O motorista de olho azul apenas se maldiz dele, espalha com o chinelo a cinza. Improvisa o rito da sorte dos garimpeiros. Amarra o dinheiro no cordão da cintura e anda ao redor do pó. Naquele tempo, ele corria atrás do dinheiro. Hoje o dinheiro é como o tempo que corre atrás dele.

Me afasto. O motorista do caminhão azul como o seu olho, aponta para o auxiliar preto, de cabelo oxigenado como a sua identidade latina.

– Este é Domingos, meu pneu de estepe. Quando fura um, eu coloco ele, entendeu, moço? – riu cinicamente o motorista, com seu jogo de cintura, à moda brasileira, de fazer humor e tragédia no teatro selvagem do dia-a-dia.

– Bota quente pra ir ligeiro – exclama, usando o dedo como em revólver para Zé Ninguém da borracharia.

– Quente só na galinha – responde – e na sua mulher, encara Domingos como cão ao lado do dono.

Sorrisos debochados e o carro parte sem medir ódio ou rancor. “Talvez esta prosa em forma de diálogo seja rotineira entre os homens daqui”, penso.

Dentro do caminhão, minha fala não sai. Fico com a voz presa na garganta o tempo todo, me contento apenas em observar os fatos.

Olho pelo canto do olho o motorista desconfiado. O motorista olha com uma linha dura, de um canto ao outro da boca. Há suspeitas no ar. Ele mostra um sorriso de cortesia ao cruzar um colega carregado de madeira.    

Pára, fala, olha, sorri, sorri de novo… desta vez, cinicamente, meio Judas, como quem busca parceria para fazer patifaria. Buzina para provar que está no comando.

Passamos o portão da fazenda. No letreiro, Fazenda Progresso. A placa amarela avisa: não queime, não desmate. “Um disparate! ”.

A estrada de chão passa no meio de gados, estacas, pastagens. O jegue transportando feixes de capim na garupa corta a estrada de chão ao meio. O caminhão “encosta” no rabo do animal que alteia o colo vaidoso. “Tudo muda no tempo”, penso. “O jegue, tração animal forjada no contraste da máquina de ferro, no folclore rudimentar da floresta”.           

Logo a seguir, barraquinhas de cachaça 51 espalhadas para alívio dos caminhoneiros. Motosserras atiradas ao chão. Motoristas jogando baralho; outros fumando pontas de cigarro; outros subindo na cabine e cuspindo no chão.

Ouvia, de olhos fechados o ronrom monótono do caminhão azul e o zunzum interminável do vento, rascunhando o espesso muro de poeira do chão.

Mais distante, a ligeira sombra esquelética de um urubu cega o sol de algum desgraçado defunto.

Após horas monótonas de entrar e sair de buracos, desviando um, pegando outro, acho a montanha de árvores. Todas de pé. Um bosque!

A floresta nativa desafia o céu, engravida as nuvens com o bico verde das árvores.

O caminhão vira a uma vereda invisível, penetra nela.

O caterpillar já tinha gozado há dias.

O motorista, com arranco de besta cansada, afina os instintos, derretendo as fibras do corpo, endurecendo os dedos dos pés no acelerador, impaciente, no antegozo do primeiro enlace sexual. Os olhos esticados de prazer, os braços duros procuram massagear as coxas das árvores, as narinas respiram o cheiro sexual das folhas encontram a respiração forte da floresta, grossa, embriagada de quem tenta mastigar o ar abafado, de quem, sem o querer consciente, sente-se aflita, crucificada pelo destino.

O caminhão fita primeiro as toras de madeira espalhadas no chão. Montes de terra vermelha, parecendo barrigas “desventradas” de mães moribundas pela morte desleal dos filhos.

Folhas revestidas de poeira como cadáveres… uma luz branca fura a espessa capa verde, tenta proteger-se da invasão do sol.

Silêncio… silêncio da floresta… silêncio dos animais…

Silêncio entroncado no som dos arrochos da caixa metálica da marcha do caminhão, do aço sobre aço, do gozo surdo diante de gemidos; soluços delirantes, na espera da sentença impassível do homem sem memória.

Terceira, segunda, primeira, acelera segunda, acelera e mais aceleradas zoadentas. O caminhão levanta a cabeça numa inclinação ascendente, a poeira responde… outros arrochos violentos. Segue, entra, sai, segue, sai de novo. Agora entra e sai com a cabeça e o resto do corpo. Os galhos abrem braços e pernas.

Fecho a janela, não sei se por piedade ou para cegar as visões bizarras e flutuantes dos meus olhos.

A floresta cai prostrada de ventre aberto, morrendo de tremor da cabeça aos pés, sem ouvidos, olhos, sentindo o atrito da máquina de ferro nas carnes e o delírio do corpo a corpo; sentindo o pneu seco comprimindo a areia esgotada do sangue virginal da terra.

O caminhão pequeno, como Davi contra Golias, cheira os pés da castanheira gigante. Gigante como as ambições do motorista!

Gosta! Pára! Olha! Desperta-lhe os desejos de dominação.

O motorista olha com desdém um caboclo sentado em velho tronco deitado no chão. A cabeça reclinada na palma da mão, e os galões vazios ao lado.

O caboclo, olha com a boca estirada, o caminhão azul atolar a traseira ao pé da castanheira gigante.

– Cadê a motosserra? – grita o motorista, com leve sorriso encrespando o olho azul de prazer.

A boca amarga do caboclo lembra-lhe a barraquinha de Cachaça 51. Lá onde ele tragou, esqueceu, descuidou¼

– Cadê minha motosserra? – pergunta o caboclo com o pensamento amarrado no colo da garrafa e os olhos chorosos ele que nem tinha acabado de pagar a motosserra e a comida do dia não ganhou.

– Cadê? – Parecia dizer, sem muita convicção, como quem faz juramento na areia da praia.

– Cadê a motosserra!? – Exclama para o fundo dos meus olhos – por Deus! Cadê!? – Num grito que corta o ouvido da selva amazônica.

Sento sozinho na sala do cinema. Hoje está fria, parece uma geladeira. Olho para a tela gigante na minha frente. Uma faixa de luz branca cruza as cabeças das pessoas entrecortando a sala.

Espectadores estão em agonia, impassíveis, pontas de narizes espalhadas no ar. A seqüência do filme corre rápida, agoniada para a cena final. Logo após, o vídeo pára cheio de escritas incompreensíveis, uma em cima de outra. Leio o elenco e a produção do filme no roteiro final, que passa rapidamente. Presto atenção no produtor e diretor. Um som agudo que fura os ouvidos anuncia os patrocinadores.

Só um espectador levanta com os aplausos que se arrancam da boca, apitando surdo como um caminhão cheio de notas verdes para a satisfação de “um só”, porque sabe que o caminhão roda sempre para as mãos do patrão, o que toca ao peão são apenas as migalhas da luta pela sobrevivência, aquelas que corrompem a consciência e a ética coletiva.

Mal podia imaginar uma cena, que já acontecia: eu era confundido com um fiscal sem jeito e meio assustador.

– Você é um fiscal do IBAMA? – Perguntou alguém, endurecendo a voz.

Sem entender-lhe direito o medo, fiz outra pergunta que o deixa ainda mais intimidado:

– Gostaria de comprar sua serraria. Tem negócio para ela? – Disse para um par de olhos em estado de alerta.

– Você é jornalista? – Pergunta o homem curioso, andando de um lado e olhando de outro, com a mão no cabo do facão na bainha.

– Quero ver se tem madeira em pé para comprar – digo, como nada querendo.

Cruzam os olhos…. Cruzam e apontam.

Penso na estratégia necessária para realizar a entrevista.

– Eu não tenho dinheiro, meu dono é quem tem…

– O que você faz por aqui? – Continua espiando, mas com ar de quem estava de olho no negócio.

– Pesquiso as florestas tropicais – digo assim e, sem verbalizar, penso… “Não me mate, não me seqüestre”.

O homem me olha no mergulho das pupilas, como a garça na lagoa da Parangaba, tentando imaginar, por sua vez, que história é essa de pesquisa, naquele fim de mundo, coisa de gente que não tem o que fazer.

Procuro rapidamente caneta e papel. O suor escorre pelas palmas das mãos: molha, empapa, mancha todo o rascunho.

Não há mais tempo.

Dentro na floresta os passos, um atrás do outro penetram o ouvido. Pé ante pé, como criminoso carregando uma idéia diabólica, todos em fila indiana, dissimulando a mesma idéia, adentram a minúscula vereda de posse de facas e facões para cortar galhos e abrir caminhos.

Motosserra, instrumento maior da força tarefa, nas costas largas e quentes de alguém. Outro trazia, pendurada em braços fortes, a gasolina necessária à empreitada do dia. Adiante homens pisam seguro, sigo atrás, vou perdendo os passos, piso a sombra deles. Piso em cima de folhas, flores e a pele arrepia-se. Nem imagino o medo que tenho de cobras. “Cuido das cobras. As onças cuidam de mim”.

– Só na hora da castanheira cair estou com medo! Depois é só cuidar do negócio – exclama alguém bramindo o facão no ar.

– Ninguém prende madeira de ninguém! Quando a madeira vai para fora, bota-se um nome besta. Escreve-se “Cedrin ou Jaranana”. Acho que é assim porque é proibido tirar madeira. Acho que é! É pau duro como a castanha. Ninguém mexe com ladrão aqui. Ninguém é preso.

Mal chegamos ao local do desmatamento, o chefe já ia ordenando com o indicador fixo, furando o ar. Primeiro esta, depois aquela e depois aquela outra. Pinta um quadrado com o dedo. Os peões não esperam terminar, já estão de mãos à obra.

– Se afaste é perigoso – diz alguém.

Um cara me olha fundo, aponta o dedo embaixo do queixo, traça uma curva com a unha.

A ameaça me intimida.

Penso, o nó na garganta: “Estou na floresta, quer me matar? Ninguém vai saber”. Imagino a motosserra que corta pedaços de carne. Em raso buraco, alguém joga barro vermelho nos olhos. “É chegado o dia da morte? Ainda estou vivo?!”

Mantenho a dúvida, o medo volta a perseguir-me. Lá estava eu, sacudido numa cova, desprezado do Senhor, no meio da floresta virgem. “Ninguém me acharia agora” – penso em voz alta. Na verdade, sei que não fariam nada disso. Quisessem, fariam sem ameaçar.

Entretanto doido não se desafia.

O cara mete a unha no queixo, de novo, desta vez aponta a castanha. A capitulação dela é traçada.

“Quero escrever um livro… tenho que explicar o que está acontecendo neste fim do mundo”- penso. Que loucura, todos deveriam saber! O suor me escorre nas mãos. Mela, empapa, mancha outra vez mais os rascunhos. Nada a dizer… a mão vacila, parece amarrada, o corpo também vacila, segue as ordens das mãos.

Os peões fecham a cara com a camisa. Muriçocas entram pelas narinas, tapam os olhos, vão para a boca como faz com o morto. Só os olhos de fora deixam-se perceber, sem serem vistos. Os olhos dos peões cruzam os da floresta. Tudo fica registrado nas fotografias. São detalhes que não incomodam, que não fazem diferença.

Pego escondido a máquina fotográfica como bandido faz com a arma durante o assalto. Gostaria que disparasse, gostaria de matar todos. O dedo bate no click sem descanso.

A máquina não olha, fecha, abre e fecha de novo… não abre mais.

Não quer ver, não quer disparar. “Que pena! ”.

A floresta acorda. Olha e faz acontecer. As vozes vêm de longe como as balas de um tiroteio: vêm de todos os lados, sem saber exatamente de onde vai sair o golpe mortal, todas são mortais, cortam ouvidos, arranham o ar moribundo.

– Agora vou picar o pau no chão!

– Pega a motosserra.

Corre¼ “filho da puta”.

– Tem que comprar facão de bainha para cortar capim – me fala como se eu fosse um deles.

– Eu não tenho dinheiro. Meu dono é que tem. Eu faço pesquisa. “Não me mate. Não me seqüestre, por favor…” – leu no meu pensamento.

O medo de morrer faz mais medo que a morte, gritou-me do interior da alma uma fina voz que não consegui sufocar: “filho da puta¼ não tenho medo de morrer”. Sorri cinicamente o motorista, ele sabe que na verdade, tenho.

– Tira os paus do chão. Faça o arrastão, corre.

– É por aqui que vai. O pó do pique dá uma coceira brava – diz alguém com a motosserra suada nas mãos – Corta aqui, tem que fazer uma cintura. Amarra aqui para agüentar a poeira. Abre a picada para correr, corre.

– A boca do pau não tá muito fechada! Não vai custar para cair! Vamos correr por ali? Vai… corre!

A mata está angustiada, nem chora…  Cai a mãe da floresta.

É tal gritaria, que ninguém se entende.

– Cai a castanheira… entrega-se sem resistência como Cristo.

– É para correr!

– Eu não sei correr…

– Então fique…

Bato na máquina fotográfica com os dedos médio e anular. Os dois juntos. O primeiro não responde mais às ordens das mãos.

Tudo desaba… caem ruídos, caem galhos, caem folhas, caem macacos, caem pássaros.

– Cai, caiu?

“Caiu… Cai… Caiu… Cai… Está caindo tudo…”

Caiu outra. Outras três caíram também.

Caiu em cruz, vencida sem resistência.

“Minha pele arrepia. Primeiro, foi à percepção de um som. Logo após, a respiração ficou trancada na garganta. O coração parou na boca do estômago. Os olhos grudaram no ouvido. O ouvido apertou a boca para não engolir o som.

Era como se cada músculo sentisse a violência da queda dentro de mim.

Era como se braços, pernas, se cada nervo e o sangue das veias das pernas e dos braços estourassem no fundo da raiz.

Era como se os pés que seguram a terra, a areia, cada grão que compõe a areia que segura a terra embaixo dos pés sentissem o fogo, o choro, a pressa e o desespero.

Tapei o ouvido, mas foi como o despejo da turbina, do reator de todas as turbinas nas orelhas.

Era como se, a cada instante, a cada fração de segundo, a cada pisco de olho, me penetrasse um vulcão na pele, nos dedos, nas unhas e nos ouvidos. Como se o nojo prestes a sair pela boca e todo o nojo de todos os homens da Terra voltasse para a garganta deglutindo o coração e cada artéria que traz oxigênio para o coração.

Era como se o cérebro, que aperta e acorda os olhos, acostumado a decifrar a brisa do mar, os lábios salgados das ondas e a tosse do vento sobre a areia, morresse.

Era como se todo o mar, cada pingo de água do mar, enchesse cada uma das veias que levam o sangue para o cérebro.

A Terra gritou.

Gritou como uma mulher de barriga grávida que faz o parto na boca do ouvido e sente mais aguda e próxima a dor do neném.

Gritou o galho.

Gritou cada folha de galho para o sol, e o sol furou o céu como um trovão que não acha descanso e paz no choro das nuvens.

A Terra sacudiu.

Vibrou como um trator de mil cavalos endoidados, como se todos os cavalos endoidados da Terra, concentrados em chão vermelho na queda de uma árvore, nos frutos e em cada fruto e semente, despegassem a carreira da luz, e o som incandescente furasse o ouvido de Deus e penetrasse o umbigo do Universo.

E eu que não conhecia aquilo, chorei, chorei com um sentimento que não tem encontrado peito para apertar, chorei o silêncio sem lágrimas das folhas, chorei sem o suspiro do coração da árvore, chorei seco, sem vida, chorei a morte enterrada na alma da floresta”. 

– Qual é a próxima?

As castanheiras caem uma atrás da outra…

– Viu que caiu? Satisfeito? – Disse com o olhar preso na motosserra.

– Vi sim. Que bom que caiu – digo assim em voz baixa, sem motivação.

Minhas pernas tremem, reclamam o chão, vibram pela emoção.

Na sala de cinema, os espectadores também vibram pela emoção.

Gente que devora pipoca com a força magnética das pupilas, as bocas entupidas reclamam bebidas para os esôfagos. Os olhos hipnotizados escondem-se no fundo dos copos. Vendedores extravagantes pulam nos braços das cadeiras ágeis como macacos ao vento, sacodem o milho no óleo quente como se tivessem os vermes no corpo¼ uma fumaça feita a vapor engole a sala de fantasmas.

Só se percebem as luzes do fogo das pontinhas dos cigarros fumados nervosamente, à velocidade do trem, um atrás do outro, sem descanso.

Estou na sala de cinema, de barriga presa entre as mãos, sem nenhuma noção de tempo e espaço, com o corpo fervendo como metal ao fogo. O tempo é enxuto e não corre como quando trata com impaciente. Escuto em silêncio os gemidos surdos da floresta; os soluços agonizantes que embriagam os olhos e sacodem as fibras.

Tudo desaba numa agonia sobrenatural de anjos violentados por diabos.  

Estou de volta, ao lado da castanheira morta, provavelmente só com uma parte do meu corpo, sem a terra que segura os pés.

Olho para as raízes da árvore desfigurada na terra vermelha trepando o ar e jorrando água dos poros.

Viro as costas, solto uma lágrima presa muito rapidamente. Outras duas desfilam no rosto sem querer. Tenho medo que alguém descubra minha tristeza.

Alguém me consola:

– O que tem?

– Nada. Só os mosquitos nos olhos.

– Vai comprar a serraria?

– Compro toda a madeira que estiver em pé.

– Mas acabou, moço!

– Já acabamos com tudo, moço.

– Onde se usa pastagem não se usa madeira. É por isso que os criadores de gado são piores que os madeireiros¼ – diz o chefe que comanda os peões da madeira.

– É dinheiro que rola como pneu no chão¼ A floresta é negócio de índio, de primitivo, sabia? Tem que asfaltar para o pneu rodar depressa – riu cinicamente o motorista com ar crítico de deboche perverso.

– Tem que se fazer alguma coisa, não é moço? – Interroga-me alguém com ironia suspeita.

“Não quero ser derrubado como madeira! ”

Eles não têm um projeto sério para reflorestar. Na floresta é tudo um negócio só. Plantam eucalipto na beira do rio para esconder as vacas que passeiam atrás. Não vão ajeitar uma casa em três dias, nem replantar uma árvore de três mil anos. Os homens não têm educação¼ e no mundo é tudo uma coisa só. “Filhos da puta! ”.

– Olhe a tora, está pingando como a buceta de uma mulher é o sangue da madeira – exclama o motorista batendo na castanheira morta, com os nós da mão.                     

O filme volta a passar. Continuam as cenas sinistras… daquelas que fazem virar os olhos e a boca apertar os lábios.

Sempre há os que não entendem.

 

É hora do almoço. Sinto gastura ao ver aquela refeição, misto de comida vencida, podre, fétida pelo calor. Em bacia de plástico, é servida aos trabalhadores, a mesma para todos. Três pessoas comem: primeiro uma, depois outra, depois mais outra.

Por último, formigas e moscas.

Homens fortes de corpos cansados amontoam-se na beira da estrada, como indigentes em hospital público. Respiros abafados, vozes ofegantes.

Os instrumentos de trabalho acomodam-se num largo tronco. A motosserra ao lado quer descanso; galões de gasolina meio vazios estão empilhados dois a dois; o caterpillar sentado num monte de areia pede tempo.

Homens dominados pelo cansaço se cruzam em olhares distantes. Os olhos se cruzam pelo nariz. As narinas são muradas de poeira. As bocas abertas tentam puxar o ar dos pulmões abafados. Tempo quente e úmido, perverso, eles pensam.

O almoço corre silencioso e rápido com raros impulsos de diálogos mastigados como alimento.

O sol mostra a clareira.

Cemitério a céu aberto, galhos pendurados caem, terra, buracos, troncos de madeira, areia, toras que pingam; o sol ardendo, queima sem pena. A terra revolve pela quentura, os pés se enchem de terra.

“O friozinho, a brisa leve, o cheiro verde, cadê?

Onde está a Amazônia que conheci? ”.

As cores são pesadas, a paisagem cheira a óleo queimado. A madeira é jogada no chão pelas queimadas.

A floresta recorre a uma lenda para se proteger: “O Curupira é um anão disforme, com os pés virados para trás. Todos aqueles que tentam segui-lo vão se perder”. Ninguém deles se perde. Os peões sabem de tudo, das veredas, das estradas. Reconhecem folhas, plantas, sons, ruídos. Alguém pega um galho de árvore e parte a metade com o facão. Toma, engole… engole tudo. Desce um líquido azul cristalino: é a linfa da planta. Diz que outros galhos são venenosos. Diz para eu não pegar aquilo que é verde e amarelo.

– Aquilo lá não é um galho, é uma cobra! – dá uma boa gargalhada com a água saindo pelo canto da boca.

Outra vez, pé ante pé, em fila indiana, sem descanso algum.

A floresta pede tempo. Os peões estão todos apressados. Na pressa, deixam alguns paus em pé como se ouvissem o pedido da selva.

–  Graças a Deus, penso em voz alta.

– São queimados vivos – responde alguém – são reprovados nos testes comerciais, não têm o tamanho adequado.

O macaco senta no chão. De mãos abertas, calorento, suor descendo, ombros abafados, olhos encurvados acima do nariz, o sangue desce pela cabeça. Acostumado à liberdade, faz pedidos de socorro aos companheiros distantes. Ninguém chega. Todos estão com medo.

Um favo de abelha no chão, o mel desliza fora, a abelha rainha está junta, o macaco se esforça para agarrá-la, não consegue, perdeu as forças.

– Deus salve a natureza! – Exclama o caminhoneiro cinicamente, rindo com toda a sua carne.

Coquinhos de castanheiras espalhados pelo chão, estragados. O facão parte um… mastigo, engulo, mastigo o resto, engulo tudo. “A selva tem muitas riquezas! ”. Olho para as plantas de cacau: umas partidas em duas. Outras de cacau amarelo; cacau verde machucado, pisado no chão. A marca da roda de ferro do caterpillar pisa em cima, sem piedade. O caterpillar faz as estradas, uma após outra. Outras marcas de ferro¼ outros cacaus pisados.

A bola de sol laranja desafia homens bravos: sol acima, sol a baixo, sol ao lado, sol para todo canto e lugar. Sol para queimar, secar, abafar. Aqueles homens bravos apenas se maldizem. Não conseguem enxergar os raios. O sol bate nos olhos. Cega, esconde, protege.

Trrrooommm, trrrreeemmm, tam, tam, tam… A zoada do trator avisa que é hora de voltar ao trabalho. Vem d longe, de dentro da floresta. Começa a gritaria, ninguém escuta ninguém. É a rádio da floresta!

Desliga… não… anda… não… tem que zoar mais. Mais forte, mais perto, chega.

Meia hora zumbindo, zoando… aquele tam, tam, tam fica azucrinando os ouvidos de todos. Corações saindo pelas bocas abafadas, que rogam piedade.

– O descanso acabou – grita o chefe chamando os peões de volta.

Motosserras às costas, facões à mão, gasolinas meio vazias penduradas no infinito verde, lá se vão enfileirados, um atrás do outro. Pé ante pé. Em fila indiana como sempre.

Do macaquinho nem se deram conta, tantos eram seus companheiros, caiu sozinho, morreu sozinho.

Olho a sala de cinema. Agora meio vazia.

O frio avança. A metade dos espectadores, aborrecidos, virou as costas.

A velha filmadora faz uma pausa sem nexo.

A poeira brilha ao cortar a sala, cruzando as cabeças lúcidas e os olhos apavorados.

O clarão da luz penetra, fura a tela branca.

Após, silêncio.

Silêncio entrecortado de sons continuados, gasguitos, roucos e agudos do motor da filmadora.

Desliga…  Não… anda…. Não.

O ruído é incessante, ronca em agudo encorpado, tem que zoar mais, chamar a atenção.

É o charme da sala de cinema!

-Moço, aqui na floresta não tem dengue, só mosquito. Lá na cidade tem. É lixeira e água parada de esgoto. A urbanização faz mal à floresta. Faz mal a tudo. Está me ouvindo, moço? Você tá pálido!

– Estou bem – respondo com medo de ser abandonado na selva como um cadáver.

– Quando eu cheguei aqui chovia muito¼ agora quase não chove. A mata puxa muito a umidade. Corria água pelo rio, lá onde era cheio de árvores, de um lado e de outro. Mas derrubamos tudinho. Hoje em dia a água esvazia, corre fora. A vaca passa de pé enxuto. Aqui virou um cemitério de castanha.

Vozes que rascunham o ar sem pausa, sem pressa, sem sintonia.

Tapo meu ouvido, viro de costas, sento, levanto, me afasto, mas o vento da floresta carrega tudo, carrega o mergulho do som. Carrega para todo canto e buraco, sem pena, sem proteção: é para ouvir mesmo!

– O bicho dá uma peniqueira ruim na gente, viu? O pó furou o meu pé todinho. Cadê o limador? Cadê? Tem que abaixar a lâmina um pouco. Entra mais na porra dessa mulher com o dente da lâmina – gargalhou o homem, medindo cinco metros cada tora para o corte.

– Vai sobrar um pedaço! Não pode perder nada. Esse pedacinho ai vai dá um dinheirinho bom.

– Agora vou traçar ele dá pra fazer um traço a mais com a gasolina que sobrou? Pau duro de morrer viu afaste o caminhão para passar… acabou a gasolina?

– Acabou! Dá coceira, irmão, não dá para agüentar mais não.

– Vamos lá. Não pare. Ande mais.

– Não… – grita outro peão.

Apita o caminhão azul. Apita seguidamente com som rouco, agora agudo.

É a chamada, o apito do caminhão azul.

A silhueta do caterpillar sobe o monte de terra como coronel frente ao pelotão. Agora é ele no comando.

Começa o embarque no caminhão: arrasta, puxa, torna a arrastar, puxa de novo¼ agora vai!

Vai uma, vão duas, vão três, quatro, cinco toras!

– E agora?

– Arrocha a marcha, dá a segunda, agora a primeira joga a corda joga o cabo pronto? Está bom. Pode soltar.

– Joga o cabo e amarra pelo pescoço – ordena o chefe.

– Pronto?

– Pronto, pode ir!

Volta a gritaria na floresta. Ninguém se entende direito. Ninguém escuta ninguém.

– Rápido… vai cair água daqui a pouco.

– Se chove, o caminhão atola e não sai daqui.

– Tá doida pra nos ferrar esta porra  de madeira. Não quer sair daqui não é a época de tirar madeira, porra! Porra de inverno, de chuva, de terra, de barro. Tem que ter trator de esteiro para poder levar madeira. Não adianta caminhão na lama!

Porra eu sabia é tudo culpa deste MERDA! – E me indica com raiva.

– Moço, o que está fazendo neste fim de mundo! Acusa-me o chefe dos peões.

– Quero ver se tem madeira em pé para comprar.

Cruzam os olhos…. Cruzam e apontam.

– Eu não tenho dinheiro, meu dono é quem tem.

“Não me mate, não me seqüestre”, penso assim, mas a minha alma falou tão baixo que a palavra morreu na boca.

– Aqui é um negócio velho, moço. Está tudo acabado, lascado.

– Não sobrou nada da reserva florestal “Progresso”. Agora o dinheiro rola para a fazenda Novo Paraíso. Lá tem uma serraria grande e o pessoal acha comprador logo. Vai muita madeira para fora. Os caminhões saem cheios; é madeira que rodeia o tempo todo.

– Aqui o negócio acabou, mas no Paraíso é bom – disse um peão brincando com as palavras.

– Se você quer comprar madeira em pé, o Paraíso é o melhor lugar, está ouvindo!?  – Repetiu o chefe dos peões dando uma boa gargalhada e cuspindo no chão.

Subo na cabine do caminhão, estou cansado, sento no banco de madeira dura. Estou com febre. “Um colchão me aliviaria o cansaço” – penso. O motorista passa-me uma toalha empapada de suor.

– Melhor que o banco… – diz sorrindo pelo canto do olho e batendo no meu ombro como selvagem.

A buraqueira da volta é danada. O caminhão pula feito canguru. “Uma caninha 51 me ajudaria a febre”. Pego uma e mais uma; assim não penso mais. Vence-me o cansaço.

Caminhões enfileirados amontoam-se nas barraquinhas da volta, cheias de motoristas cansados na beira da estrada.

Cinco horas da tarde é o pôr-do-sol da floresta!

A estrada vermelha refuga o pó seco. A poeira mistura-se com os últimos raios de sol.

Poeira na frente, poeira atrás, poeira dentro do caminhão.

De um lado e de outro, o gado Nelore, branco, gordo, cansado de tanto comer, deita na relva verde, cercado por estacas de madeira e ferro.

Fura um pneu. O motorista enfurecido me encara.

Leio seus pensamentos. Pela expressão dos olhos, é severo seu julgamento.

“Vai embora, está me azarando, vai embora ou te mato”

“Mata não! ” – Penso eu.

Por fim, larga uma tora na estrada.

Olho para o preto de cabelo oxigenado e pernas finas, aqueles que chamam de pneu de estepe.

– Vai tu, Domingos! Ordena o motorista.

E Domingos, manso como um cão ao lado do dono, tentando adivinhar suas intenções, troca o pneu furado no escuro do fim do dia. Acostumado a andar de cabeça baixa, assiste o velho caminhão azul que não agüenta mais o tranco na selva.

Ninguém pára. Ninguém ajuda ninguém.

Medos de assalto todos têm.

– É a punição da mata – diz submisso Domingos, sem vontade de fugir ao seu destino.

Reaparece uma luz fosca, tingindo os rostos mais foscos que a própria luz. Ajudo na troca do pneu para ser mais rápido, antes que o medo tome conta de mim.

A luz vem mais viva, agora vermelha, vem de longe, é uma clareira.

“Graças a Deus, um povoado. Estou salvo”.

Fixo o olhar, vejo sem acreditar, nada de povoado, nada de luz, nada de gente.

É uma chama, uma única interminável chama. A chama de um fogaréu.

As árvores queimam à noite iluminando a floresta como o dia. Fogo a baixo, fogo acima, fogo para todos os lados.

Estamos prisioneiros de uma muralha de fogo. A floresta queima sem pena. O calor vai para os pulmões, vai para a cara, vai para as veias grávidas dos olhos. Tudo se pinta de vermelho e branco como uma mancha de cores perversas no escuro da floresta. As chamas massageiam as silhuetas das árvores orgulhosas. A sorte delas é traçada.

Chegamos ao portão de saída da fazenda. Uma placa amarela diz: Proteja a floresta. Não queime. Não desmate. “Um disparate! ”.

O fogo está por todos os lados, fogo acima, fogo a baixo, fogo à esquerda, fogo à direita.

Os caminhões saem repletos de madeira. As toras deitam como morto em carro da funerária.

– Fazenda Progresso murmura cinicamente o motorista iluminando a placa de saída com a luz do farol.

“É a vitória do progresso”, penso timidamente.

O caminhão do motorista de olho azul rascunha a areia de pó do quintal da serraria de Eldorado.

– Ei, peão? – Chama uma mocinha.

– Ei, gostosa! – Responde o motorista soltando os freios e passando a mão no sexo como animal selvagem no cio.

– Tem um “vento” bom por aí?

– Só quando o carro parar. Aí a poeira levanta – diz malicioso o motorista.

O motorista solta os laços que seguram as toras. O caminhão faz um zigue- zague pela serraria como pássaro ferido que não sabe onde bater as asas. Mostra, orgulhoso, a carga. Vai para frente. Vai para trás. Vai pisando nos freios. As toras caem umas atrás das outras, amontoadas como cadáveres na fossa comum. Esperam resignadas as decapitações.

– Eu prefiro bicho a homem – grita o dono da serraria apontando o dedo para seu motorista.

– Bicho também é homem – encara a mocinha passando a língua na poeira dos lábios.

A mocinha está ansiosa. De pé, encostada no pau que segura o barraco do chefe, escuta as presas do dono, em silêncio. Olha a carga de madeira, imagina o dinheiro que vai dar… um presente poderia receber. Mas na selva ninguém ajuda ninguém. E ninguém lhe dará nada de graça. A mocinha está sozinha. “Precisa de proteção”, penso. E ela, como adivinhando meus pensamentos, passa a mão em cima da perna. Uma gota de sangue escorrega no chão. O cabo da faca preso no fio da calcinha tinha-lhe furado a pele.

A velha filmadora exausta volta a passar as últimas fotografias.

Na sala de cinema, sozinho, o filme acabou e todas as cadeiras estão vazias. Os bilhetes atirados ao chão, os copos derramados de refrigerantes e os pacotes de pipocas amassados num canto. A mulher do botequim quer fechar, tenta tirar um chiclete do sapato, tem que voltar depressa para casa para esquentar a comida do marido, que também é motorista.

Penso nos contrastes da floresta.

Na reserva florestal da fazenda Progresso, tiram-se paus para serrarias e se toca fogo nas matas. O que não “presta” vira pasto. Progresso é um lugar no fim do mundo, ao fim do mundo. É isolado de tudo, não tem nenhum policial para fiscalizar. Não tem prisão e ninguém é preso. Não tem nada!

Os fazendeiros derrubam rolos de madeira sem necessidade, não estão nem aí para a Lei de Deus. Deixam uma mata de reserva e o resto é só campo limpo. Só pensam em plantar capim para vaca ou soja para vender. Botam fogo no pó das serrarias e isso dá uma fumaça arretada. Não é bom, não é bom para nada!

Dizem que em órbita tem um radar novo do governo, mas é como uma astronave sem comandante, sem tripulação. Não existe ninguém para fiscalizar a terra.

A denúncia pode existir, mas não muda nada porque a propina é muito grande e todos saem ganhando. É tudo só no papel.

“Se eu tenho um milhão de reais, vou investir por aqui, vou comprar uma serraria e não vou falar nada para ninguém” – pensam assim a maioria dos peões.

A polícia não pára por aqui, vai logo embora e, se a denúncia fica no comando, é tudo mais fácil. “O desmatamento fica legalizado”.

Em Eldorado dos Carajás está tudo limpo agora. Não tem queixa de nada. A gente acostuma cedo. É só poeira nos olhos. As estradas ocupam os espaços das florestas e as bandas tocam em lugar dos passarinhos. Passando por aqui, só enxergo as luzes atrás dos carros. Tem um bocado de pó. É só poeira arretada pó e queimadas.

Não é bom, não é bom para nada!

Penso nos madeireiros que têm tudo, até gerador para puxar a serraria, quando há falta de energia na cidade.

Nas vilas não tem nada, falta tudo, o povo está no escuro, não tem sequer água para beber.

Mas a serraria tem eletricidade funciona noite e dia. É moderna!

Precisava de tempo para imaginar todo o acontecido. Dei-me conta de que na sala de cinema havia ficado somente eu e aquele fio de luz, agora brando. A mulher do botequim foi-se embora sem fechar, não tinha nada a perder, nada a ganhar.

A sala agora estava limpa, a lixeira estava cheia de latas e pipocas.

Mas outro filme passava na minha cabeça, no teatro do subconsciente, entendendo e negando toda a realidade vivida na floresta:                      

– É um filme de ação?

– Não, foi só um dia de aventura na floresta.

– É ficção?

– Não, aconteceu. Acontece de verdade, lá na Amazônia!

– Tem a máquina?

– Tenho.

– Cadê as fotos?

– Estão aqui na máquina, mas necessito rever.

– Você tem o título?

– Sim, claro, Amazônia km 861.

– Esquisito, não?

– O quê, o filme?

– Não, o título.

– Eu vou embora.

– Eu quero ver o filme de novo.

– Eu não quero vê-lo outra vez. Estou morto de aborrecido!

– Então boa morte para você e boa morte para a floresta.

– É verdade, acabou. Foi muito rápido. Veloz mesmo!

A porta da entrada do cinema parece uma teia de aranha de alguns sobreviventes da floresta. Em lugar da tela do cinema, tem um buraco. Os espectadores desapareceram da sala. Tudo parece imprevisivelmente vazio como num abismo.

Se perdem os olhos, dissolvem-se os corpos, partem-se os braços, explodem as fibras que seguram os corpos.

É só terra nos olhos, água enxuta, oxigênio destroçado, sol aniquilado. A raiz da árvore da floresta perdeu-se sem fim, sem começo.

Perdeu-se para sempre.

Na sala de cinema não tem mais carne, respiros de narinas. Só um silêncio constrangedor, oprimente, ronco sem alma, sem vitalidade.

Acabou tudo dentro de um espaço imenso, vazio, sem luz.

Tudo congela.

Tudo fica registrado nas fotografias.

– São detalhes que não incomodam, que não fazem a diferença – diz a mulher do botequim reacendendo a luz da velha filmadora.

É o charme do cinema!

“Aqui o negócio acabou, mas no Paraíso é bom, disse brincando com as palavras”.

“Se você quer comprar madeira, o Paraíso é o lugar melhor, está ouvindo? – Perguntou dando uma boa gargalhada e cuspindo no chão”.

“A frescura, a brisa leve, o cheiro verde, a floresta, cadê?

Onde está a Amazônia que conheci? ”

 

CAPA ATRAS DO LIVRO

“Não me mate, não me sequestre.

Eu não tenho dinheiro.

Meu dono é que tem”, penso.

Direi assim para salvar a minha vida, penso deitado na cama de cimento, de quem sabe qual prostituta.

Viro as costas, solto uma lágrima presa muito rapidamente.

Outras duas desfilam no rosto sem querer.

Tenho medo que alguém descubra minha tristeza.

Alguém me consola:

– O que tem?

– Nada. Só mosquitos nos olhos.

– Vai comprar a serraria?

– Compro toda a madeira que estiver em pé.

– Mas acabou, moço.

– Já acabamos com tudo moço, diz outro.

 

1 thoughts on “AMAZÔNIA KM 861

  1. A publicação deste trabalho de Marco Bonatti é mais do que oportuno. No momento em que a floresta amazônica esta sendo devorada pelos intresses do agrobuness, com autorização de um governo ilegítimo que não tem compromisso com pessoas, muito menos com a política de meio ambiente e a preservação dos recursos naturais da região Amazônica.
    Os povos indiginas estão sendo desimados. As suas terras invadidas por “grilheiros” insaciáveis, que cometem uma série de crimes em nome de um desenvolvimento econômico que só exista para as famílias destes.
    O Brasil vive um dos piores momentos da sua história e tudo leva a crê que o que começou errado dificilmente terminará certo.
    As Nações Unidas e os organismos internacionais de defesa do meio ambiente não tem reagido o suficiente para impedir essa série de crimes. Apenas a primeira Ministra da Noruega chamou atenção do famingerado Ministro brasileiro do Meio Ambiente, ameaçando cortar os incentivos financeiros, destinados à preservação da Amazônia..
    A Rio 92 e tantas outras conferências importantes em vários países não conseguiu impedir a escalada destruidora do Meio Ambiente e comprometeu a política de desenvolvimento sustentável.
    Atitudes positivas como esta de Marco Bonatti é uma ação concreta que contribui para denunciar ao Mundo tudo de ruim que vem acontecendo na Amazônia.

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